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Ser Pedreiro

  • 1 de set. de 2020
  • 5 min de leitura

Manuel, adolescente de 15 anos, voltava do mercado com seu pai no final da tarde. Uma forte geada acometia a cidade e o sol já havia se posto, quando, a caminho do carro, Manuel viu um morador de rua a tremer de frio.


- Veja pai! Precisamos ajuda-lo, vai morrer de frio o coitado! Talvez eu deva doar minha blusa...


Robson, pai de Manuel, seguidor há muitos anos de uma religião cujo enfoque é a caridade, frequentador assíduo do ambiente religioso e grande estudioso, sem dar muita atenção ao fato, respondeu ao garoto com um ar de sabedoria:


- Filho, não te preocupe. Se ele sofre, é porque é seu karma. Nada devemos fazer, é seu destino sofrer. Não podemos ir contra as leis de Deus.

Sem que Manuel sequer respondesse, ambos continuaram a jornada até o carro, de onde retornaram a seu aconchegante lar, onde sequer precisavam se agasalhar muito contra o frio. O adolescente ficou um pouco incomodado com a situação, mas entendeu o que o pai disse e acreditou que estavam a fazer o certo. A noite caiu e todos da casa foram dormir em suas confortáveis camas.


Em algum momento, impossível de ser aferido, daquela noite gélida, Manuel teve um sonho. No sonho havia uma mulher, cuja face era impossível enxergar; suas vestes, rasgadas, eram com certeza de uma pessoa extremamente pobre, pensou o adolescente. Ela estava sentada em cima de uma gigante flor de chão, cujas raízes se podia ver ao infinito. Ali se instalou um diálogo, que foi mais ou menos assim:


- Diga, meu rapaz, por que deixaste com frio aquele homem, se podia aquecê-lo?

- Era o destino dele! Meu pai me explicou que se Deus quis que ele sofresse, não devemos interferir! Mas nós fazemos muita caridade! Doamos dinheiro, distribuímos comida, dentre outras coisas...; mas naquele momento aquele homem precisava sofrer!

- Entendo... Me diz: você e seu pai têm destino?

- Mas que pergunta é essa, claro que temos destino... E nos esforçamos ao máximo, a todo momento, por um destino cada vez melhor!

- Percebo que estás em desespero, por isso essas afirmações exclamativas. Se nega a refletir de forma diferente para não destruir a crença que sua própria família criou. Mas estás agora proibido de falar; cala e escuta.


Por mais que Manuel tentasse com todas as forças falar, sequer uma palavra saía de sua boca, ao passo que ele foi obrigado a escutar o que a mulher tinha a dizer.

- Em seu mundo engenheiros projetam um grande edifício, de mais de 30 andares. Para que a empreitada se materialize, são necessários alguns trabalhadores. Tais trabalhadores, inúmeros, vão, aos poucos, colocando de pé cada pedaço do projeto. Ao final da grande obra, qual seria a diferença se um trabalhador dissesse, orgulhoso: “Fui o responsável por aquela bancada”; “fui o responsável por aquela parede”; “já eu assentei aquele piso”; “eu fiz aquela sacada”? O projeto total, do edifício, é o que realmente importa, ao passo que fazer essa ou aquela parede, esse ou aquele piso, possuem a importância de somar no todo, mas não há motivos para se vangloriar disso. O conjunto da obra é o que tem de fato valor real. Agora imagine que nessa construção existe um pedreiro que, ao invés de auxiliar no levantamento do edifício, corre para a garagem e lá começa a fazer a sua própria casa. Então ele começa a dizer: “veja, fiz o meu banheiro”; “olhe que maravilhosa minha churrasqueira”; “meu quarto é incrível”. Esse tolo pedreiro, assim que terminar o expediente, terá sua casa destruída, já que o que importa é construir o prédio, além do que será levado à justiça, para que devolva o salário que recebeu, uma vez que em nada contribuiu com a obra. Entende o que eu digo?


De repente Manuel sentiu uma leve brisa e percebeu que podia falar. O rapaz estava atento à explicação, mas ao mesmo tempo confuso...


- Eu estou entendendo o que você diz, mas qual relação com o homem?

- Ah... Humanos... Sempre incapazes de pensar além de um raciocínio material... – sussurrou a mulher, após um longo suspiro. Todo pedreiro que está no terreno da construção foi contratado, já que recebe seu salário. Se era karma daquele homem passar frio, você e seu pai não estão fora dessa Lei, sendo que, portanto, podendo naquele momento pôr fim àquele sofrimento, era dever de vocês. Ao acreditar que são tão especiais que agem fora da Lei do Karma, vocês são como o pedreiro que constrói uma casa fora da obra. Quando a sua jornada de trabalho chegar ao fim, serão levados à Justiça e será descontado o material que investiram fora do projeto Divino. Pois da mesma forma como existe um projetista por trás do grande edifício, existe também uma Grande Mente por trás de suas existências. Suas pequenas obras, das quais vivem a se vangloriar, equivalem a um pedreiro que diz “vejam, instalei essa pia”, em um prédio de 30 andares. Essa falsa sensação de ser especial não é real e é fruto do seu ego. Repito: se era destino do homem passar frio daquela forma, vocês, tendo a possibilidade de cessar o frio dele, foram colocados em seu caminho para que o ajudassem, mas ao invés disso preferiram seguir construindo sua casa fora do edifício. Ainda há tempo: volta à construção do edifício e caminha sob a luz da obra. E lembra: sempre que achar que você é tão bom e tão especial, já que fez isso ou aquilo outro, estás a se vangloriar por algo trivial, por mais que pareça grandioso. Você estará sendo como o pedreiro que, em um prédio de 30 andares, grita aos quatros cantos: “assentei um piso!”. Esse piso não representa nada perante o grande edifício, no entanto é extremamente necessário para ele. Cada piso é essencial, mas não é a grande obra. Quando pensar que é um grande obreiro, abaixa a cabeça e segue trabalhando, pois na realidade ainda desconhece a natureza do verdadeiro projeto. E ainda, quando pensar que aquele sofre por karma, que o destino deste é a dor, lembra que se está ao seu alcance amenizar aquele sofrimento ou esta dor, faça, assim estará agindo como quem auxilia na construção da Grande Obra; se ignora e segue como se nada tiver a ver com aquela situação, cuidado, estará agindo como o pedreiro que, contratado para construir o grande edifício, constrói sua casa na garagem do prédio. Chegada a hora, seja o bom pedreiro trabalhador, que, então, poderá dizer: "eu participei da construção deste edifício". Como é em cima, é embaixo, como é embaixo, é em cima, tal é a Lei.


O sonho se dissipou. O adolescente acordou, ainda confuso. Rapidamente pegou um caderno, escreveu seu sonho, abriu sua janela e viu que um novo dia estava a nascer; com ele, um novo Manuel.

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1 Comment


Unknown member
Sep 01, 2020

Sucintamente, temos uma sina pré-estabelecida, que pode se alterar pelo livre arbítrio. Cabe uma intervenção externa para despertar a mudança pretendida. Talvez somos colocados no caminho das pessoas para acionarmos a mola propulsora da grande virada no "destino".

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