O Sábio da Montanha
- 28 de jul. de 2020
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Atualizado: 30 de jul. de 2020
Era uma tarde ensolarada, com céu aberto e poucas nuvens. Um grande lago reluzia no meio da montanha, proveniente de uma nascente que descia de seu topo e que continuava escorrendo até os arredores da vila que, com cerca de trinta mil habitantes, havia sido construída aos pés da montanha. Depois de passar pela vila, a água vinda da nascente se transformava em um grande e majestoso rio.
Frente ao lago, em meio a uma clareira florida e exuberante, que se destacava na mata densa, havia um pequeno banco de madeira, com dois lugares, onde estavam sentados um senhor, de barba longa e branca, trajado com vestes simples, mas com pequenos adornos, e um garoto, aparentemente com cerca de doze anos, que se vestia com panos leves, um tanto surrados, mas limpos.
Ambos haviam acabado de chegar e estavam fitando o lago e o horizonte, quando, de repente, ao bater de uma leve brisa, a conversa teve início.
- Que dia lindo! Como está, senhor Grande Ancião?
- O tempo feriu e judiou um pouco de meu corpo, parece que já não respiro o mesmo ar que respirava em minha juventude... mas vejo que você está cada vez maior e mais saudável, pequenino.
- Estranho... não me parece que houveram mudanças no ar, ele e tudo mais que aqui rodeia para mim ainda são os mesmos! – Respondeu o jovem, com um grande sorriso no rosto.
- Pareço um lobo cansado, pronto para abandonar a matilha e entregar-me ao destino a que todos estamos vinculados desde o dia em que nascemos: voltar ao grande abraço da Mãe Terra.
- O senhor é muito sábio, Grande Ancião! A Terra nos honra com parte de sua matéria e nos dá a oportunidade de viver sob seu solo, o mínimo que podemos fazer é a ela retornar! Mas... o lobo parece um pouco diferente de nós, não quero ser um lobo!
- Ora, mas que pensamento foi esse, pequenino? – Respondeu o ancião com um leve sorriso no rosto. E o que o lobo te fez para odiá-lo? Não pode aceitar essa comparação?
- Não é isso! É que o lobo não sabe que é um lobo... parece que ele vem para cumprir alguns deveres, para fazer parte do papel que a Natureza a ele delega e, cumprindo-os, apenas a ela retorna.
- Sim, meu jovem... e nós? Não somos vítimas do mesmo sistema, cumprir o nosso dever e à natureza retornar?
- Queria eu ser seu neto, grande senhor, e em minha mente jamais iriam pairar tamanhas dúvidas, mas se me permite continuar esta reflexão, acredito que por sabermos que somos humanos e conhecermos nossas limitações, tanto físicas quanto mentais, podemos nos incumbir dos mais diversos deveres enquanto estivermos aqui. Enquanto o lobo deixa à Mãe Natureza o que ela dele exigiu, de nós, humanos, nossa grande Mãe espera surpresas!
- Surpresas? Estimo o seu otimismo, meu jovem. O que poderia eu, aos oitenta e sete anos, oferecer de surpreendente à nossa grande Mãe?
- Ó Grande Ancião, me reconhece como um jovem, correto? Alguém que pode oferecer surpresas à Mãe Natureza? Se assim for e se aqui estamos, a educação que me deres é uma boa surpresa à nossa Mãe.
O Grande Ancião ergueu a cabeça em direção ao céu e, após alguns segundos de silêncio, nos quais o pequeno garoto atentamente o observava, formou-se um belo sorriso em seu rosto e ele continuou a prosa.
- Às vezes me espanto com suas palavras, meu pequeno. Mas sabe, os habitantes da cidade não vêm mais buscar meus conselhos. Me sinto muitas vezes como um poço do qual ninguém vem retirar água. Homens maus cantam lindos versos sobre o progresso e sobre o mundo novo que vão implementar; a Natureza foi esquecida, descobriram que há muito dela, por isso não se preocupam mais em preservá-la. Por mais que nas Assembleias eu me levante contra os atentados às forças naturais, por cima de minha voz grita a maioria progressista. Esse mundo não é mais lugar dos sábios, mas vejo que tens um grande potencial, quem sabe algum dia te deem a voz que a mim foi negada.
- Os tempos estão mudando, Grande Ancião... mas nem por isso devemos desistir dos nosso ideais e da nossa Mãe. As polaridades são prelúdios da catástrofe. Devemos evitar as polaridades e tentar uma solução conjunta. Atacar o progresso e assumir uma postura contrária a ele vai gerar ódio dos progressistas e aversão à causa que o senhor defende.
- Compreendo. Devo alinhar meu discurso moral e de proteção às manifestações da Grande Mãe com o progresso, mostrando a importância de proteger nossa natureza, ao mesmo tempo que cedemos espaço ao progresso. Sábias palavras, pequenino.
- Ancião, tenho uma grande dúvida que invade minha mente todas as noites! Por que as pessoas desejam o progresso, se tudo o que aprendemos ser importante está dentro de nós mesmos?
- Essa é uma questão muito interessante. Tudo o que precisamos é de pacificar nossa mente e entrar em sintonia com a Grande Mãe, nos tornando parte do todo. Mas as pessoas parecem estar em uma busca incessante por coisas exteriores e externas a nós mesmos, tentando preencher com exterior aquilo que é ausente no interior.
- Mas senhor, não seria muito simples definir toda a busca do progresso como uma fuga da verdadeira missão? Digo, definir toda a busca e toda a evolução da civilização simplesmente como algo ilusório e falso?
- Meu jovem, o homem mau desvia os demais do caminho da Verdade, incentivando o caminho da ilusão.
- Grande Ancião, pela segunda vez eu percebo a demonização do homem progressista e sua intitulação como homem mau, mas o que é ser mau? Será que tudo o que existe de matéria é mau? Sendo assim, a própria Grande Mãe, por ser matéria, é má? Além do mais, como pegamos emprestado sua matéria, somos, portanto, também maus?
- São indagações muito profundas e o debate que o pequeno propõe talvez fuja e vá além do conhecimento que esse humilde ancião possui. Mas o mau é aquele que desvia do bom, sendo que o bom é aquilo que te aproxima do Verdadeiro, não poderia ser de outra forma.
- Mas Ancião! Seria isso uma blasfêmia à Grande Mãe! Se a matéria é algo que nos afasta do Verdadeiro, assim ela é ruim. Como é a Grande Mãe que nos concede toda a matéria, ela seria também ruim!
- Pequenino... apontas erros em meu raciocínio, de fato estou demasiado confuso e não consigo fechar com lógica o meu discurso. Nossa Grande Mãe não pode ser má! Mas ela é matéria, nos afasta do Verdadeiro... me sinto o ícone da controvérsia e da ambiguidade.
- Oh, Grande Ancião! Sua humildade em admitir quando lhe falta o conhecimento me arrepia de tanta emoção. Um senhor que aqui perto morava, antes de morrer, me contava histórias das mais variadas e mencionava as belezas da vida e da morte, por isso, peço a licença de proferir algumas palavras que dele ouvi há muito tempo.
- Ora, mas muitos anos, pequenino? – Disse o Ancião com um grande sorriso. Conte-me então o que desse senhor ouviu.
- Ouvi dizer que a vida pode ser comparada a um teatro. Existe o palco, existem as personagens, as máscaras e também os atores. O palco é o ambiente em que acontece toda a peça, que possui também um roteiro e é muito bem executada. Apesar dos papéis, cada ator consegue deixar a sua própria marca na personagem que interpreta. Em uma peça, por mais que a personagem seja ruim, isso não quer dizer que o ator também o seja. No entanto, para que a peça se torne viva, um ator incapaz de roubar não pode interpretar um ladrão, da mesma forma como um ator sem nenhuma dose de sabedoria jamais conseguiria interpretar um sábio. Apesar disso, não é porque o ator não possui os atributos de um grande sábio, que possua exatamente o oposto. O palco existe, assim como também existe o ator. A personagem é a ilusão, a maquiagem pela qual o ator participa ativamente do teatro. Na vida, temos que eliminar a personagem e descobrir a essência do nosso ator, porém, no teatro, devemos nos esforçar também para o progresso do palco, por assim dizer, de seus cenários. Em cada cenário a personagem passa por mais e diferentes desafios, que podem fazê-la se aproximar ou afastar do ator, sendo que a criação dos cenários pode ser afetada por quaisquer das personagens. Na vida, a peça de teatro é o lugar onde tentamos aprimorar e testar nosso ator, para tentar nos manter puros e ligados às nossas essências. O palco existe, sem de fato existir, já que ele não reflete a Verdade, uma vez que ele existe apenas para que possamos nos manifestar materialmente e trabalhar nossos atores, que aprendem mais a cada peça nova. A evolução e o investimento no cenário fazem parte de toda a peça e do roteiro. Quando estamos na personagem, nos esquecemos de como são os atores, para testar se realmente o somos e se conseguimos alcançar nossas essências mesmo no esquecimento. Compreende?
- Oh, que belas palavras meu pequeno! No entanto continuo com a cruel dúvida acerca do bem e do mal. De fato, eu não deveria julgar como mau, mas se o mal existe então qual o problema em desnudá-lo e tachá-lo como o que te afasta do bem?
- É porque o mal não existe. Grande Ancião, se aquele que cria possui dons, habilidades e belezas, não pode do belo, do bom e do justo advir o disforme, o mau e o injusto. Sendo assim, o que foi criado é o bem e chamamos a sua ausência de mal, que na verdade nada mais é do que a falta daquilo que existe. O julgamento é a ilusão da força da personagem, pois o ator não julga, já que é a marca e o fio da Verdade, assim como todos atores.
O jovem se levantou e olhou para o Grande Ancião com um lindo sorriso. Este, por sua vez, devolveu o sorriso, levantou-se e seguiu montanha abaixo, em direção à Vila. Em sentido oposto, rumo a seu alto, caminhou tranquilamente o sábio da montanha.
Muito boa a imagem da sabedoria q o menino traz... adorei!
Vivemos hoje, num mundo onde os sábios estão cheios de dúvidas e os ignorantes cheios de certezas.