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O Cavaleiro e o cavalo

  • 8 de set. de 2020
  • 5 min de leitura

Marco era um cavaleiro que estava há anos longe de qualquer civilização, juntamente com seu cavalo Vapor. Certa vez o cavaleiro avistou, ao longe, uma linda mansão, cercada por lindas plantações, com vários cavalos ao redor, além de um complexo imenso de cachoeiras, algo que se assemelhou, por certo, de sua concepção de paraíso.

Rapidamente os dois rumaram em direção a esse local, mas havia um pequeno problema: Marco, muito preocupado com seu cavalo, sempre deixava que ele tomasse frente nas decisões, de modo que não fosse, de maneira alguma, penalizado por carregar o cavaleiro.

Logo que começou a cavalgada, Vapor parou para beber um pouco de água, aproveitou e comeu capim. Em seguida, andou poucos metros e novamente desviou-se do caminho para comer mais capim, afinal de contas, havia um conjunto de capim muito bonito.

Passaram-se vários dias entre uma parada e outra. Vapor parecia não se atrair mais pela bela propriedade e pelas belezas daquele objetivo paradisíaco, mas apenas para o capim de cada dia. Além disso, vez ou outra deixava Marco na mão se avistasse alguma égua na região; quando isso acontecia, ficava o dia todo fora.

Um mês depois que começaram a caminhar rumo àquele paraíso, mal tinham andado um quilômetro. Marco estava muito frustrado e não sabia o que fazer, já que aquele lugar com que ele sempre sonhava estava ainda muito distante. Vapor, para suprir suas necessidades, foi se afastando da estrada, de forma que estava agora indo em sentido oposto ao paraíso.

Até que Marco caiu em prantos. Como poderia Vapor não entender? Naquele lugar, no topo daquela montanha, se podia ver plantações, cachoeiras, outros cavalos, era literalmente um paraíso, como poderia ele se manter totalmente avesso àquela possibilidade e se contentar com tão pouco?

Nesse momento, surgiu, do meio da mata, um jovem tocando uma lira. O som era belíssimo, tão magnífico que até mesmo o vento parou de soprar para escutar aquela melodia. Ele se aproximou, finalizou a música e, com feições bem sérias, dirigiu a palavra a Marco.

- Por que choras, cavaleiro?

- Que belíssima melodia! Restauraste minhas energias e já nem choro mais! Obrigado!

- Não te iludas; se minha canção o fez feliz, assim que ela se for voltará a ser triste. Te aflige o descompromisso de Vapor?

- Como sabe?!

- És um mentecapto. Joga sobre o pobre animal sua responsabilidade e ainda se encontra em dor e sofrimento. Impossível compreender o que fazes consigo.

- Como dizes? – sacou a espada o, agora, enfurecido cavaleiro.

- Ah, humanos... Confrontado com sua realidade, responde com agressividade, no único ambiente em que ainda acredita ser superior... Responde para tentar esconder e falsear a realidade que não queres ver: és um mentecapto.

- Cala-te músico!

- Enquanto não olhar para si e suas ações, viverá em sofrimento. Impossível ser diferente. Te digo que, no momento em que escolheu ir até o paraíso, tomou uma acertadíssima decisão; você não percebeu, mas está há muito tempo vagando sem rumo, sem sequer sair do lugar, sempre seguindo os instintos desse pobre animal. No momento em que decidiu traçar um objetivo, e só ali, foi quando percebeu o quanto estava perdido por esses caminhos mundanos, o quanto passava o tempo e você não se aproximava do seu objetivo.

O cavaleiro embainhou novamente sua espada, dessa vez um pouco mais calmo, apesar das palavras do músico terem lhe ofendido profundamente. Tentava agora refletir sobre o que dizia aquele misterioso rapaz.

- Por que você diz que é minha a culpa, se reconhece que é o cavalo quem vem atrasando meus passos?

- A humildade é uma virtude, mas não se trata ela de diminuir-se, mas sim de não se deixar inebriar pela própria força ou grandeza. Por que deixa que o cavalo guie seu caminho?

- Não quero prejudica-lo, não quero impor nada ao pobre animal...

- Deixando esse “pobre animal” a seu total livre arbítrio, você impede que ele algum dia encontre a felicidade. Está agindo como um pai irresponsável que deixa o pequeno filho seguir a vida como quiser. Esse filho, que não foi educado, acaso não morra por aí, com toda a certeza se perderá. O senhor, cavaleiro, é a mente racional, o ser pensante dessa dupla. O cavalo lhe dá vigor, mas é puro instinto. Deixar o cavalo te guiar é loucura, já que ele vai sempre se direcionar para o lado em que houverem mais recompensas imediatas. Se almeja chegar ao longe, domina o cavalo, oh cavaleiro.

- Antes eu era mentecapto, agora sou cavaleiro? Estas a brincar comigo, músico?

- No momento em que se abriu à possibilidade de entender o que se passa, conquistaste um pouco mais de respeito, não muito... – replicou o músico com um sorriso. Mas se quer compreender, escuta: é seu dever, como o único capaz de enxergar o futuro, dominar o instinto e guia-lo até onde você sabe ser perfeito. Se deixar que o instinto te guie, ele se desviará a cada estímulo. Tome as rédeas do cavalo, só assim conseguirá chegar a um lugar melhor, para você e para ele.

- Então devo seguir rumo ao paraíso e parar apenas quando chegar lá? Vapor não aguentaria, ele precisa descansar!

- Devo voltar a chama-lo mentecapto, oh cavaleiro? Se és a inteligência e se consegue enxergar melhor, também saberá não abusar do cavalo. Deve ter discernimento para deixa-lo descansar, sempre que ele precisar, não sempre que ele quiser, assim como comer, sempre que ele precisar, não sempre que ele quiser, o mesmo se dá com beber água e tudo o mais que ele necessitar. Você tem a capacidade de entender melhor do que o cavalo a quantidade das coisas que ele precisa. Se não houver a inteligência dosando, ele comerá, descansará e fará tudo o que lhe estimular a todo o momento, assim viverá toda a eternidade. E a culpa não é dele, é tua. Ele é puro instinto e assim está agindo. Você que tem a Razão, prefere não a usar. Sendo assim a culpa é tua, que finge ser pura coragem, mas é apenas um covarde que não assume as responsabilidades que lhe são cabíveis. Enquanto deixar que o cavalo te guie, jamais chegará a lugar algum, mas sempre terá satisfeitas suas necessidades imediatas. Se está contente com isso e quer passar a eternidade vagando por todos os lados, deixa de chorar. Se não está contente com isso e quer chegar até o paraíso, deixa também de chorar e começa a agir. Cada lágrima que derrama é um hino de louvor para sua própria inércia. Vai e age.

- Tens razão... Nunca havia me atentado a essas coisas... Eu é que preciso agir... Vapor já está agindo, eu é que preciso agir também... Sou muito grato a ti, oh músico estranho. Quem és e como se chama? Me conta para que eu saiba a quem serei grato por toda a eternidade!

- Me chamo Ocram e não se desanime, voltaremos a nos encontrar, no topo da montanha que almeja, e lá perceberá que sou mais próximo de ti do que imaginas! ... – gritou o músico pouco antes de adentrar novamente na mata e desaparecer completamente.


1 Comment


Unknown member
Sep 08, 2020

O instinto às vezes nos move a frente, porém, a racionalidade é que nos conduz com segurança.

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